O Interrogatório

– Quem são vocês? Que querem de mim? Com que direito me tratam assim? Por que me raptaram?!

– Nós é que fazemos as perguntas. Você deverá apenas responder de maneira breve, directa e sem disfarces. – Será que isto é um interrogatório?

– Sim, mas constitui pura formalidade. Trabalhámos no vosso planeta durante muitos anos, de maneira que deve ter em conta que já sabemos tudo.

– Não respondo às perguntas, quaisquer que sejam, enquanto não entender que raio se passa aqui e quem são vocês!

– Neste caso, vemo-nos obrigados a usar consigo de um isolamento temporário.

– Protesto!.. É banditismo! É… só o diabo sabe o que é isto! Vocês responderão por este abuso! Vou queixar-me a todos os órg…

* * *

– Concorda agora em responder às nossas perguntas? – Está bem, vamos a isso

É que tenho pensado muito durante… durante todo este tempo e decidi que nada mais me resta, senão…

– Está de acordo com as nossas condições? Repito: máxima brevidade, máxima franqueza e veracidade absoluta nas respostas. Nada de perguntas da sua parte. Só respostas.

– Sim, mas…

– Advertimos que, se você violar estas regras, aplicar-lhe-emos sanções determinadas. Está de acordo com estas condições?

– Estou. – Comecemos. Como é que vocês chamam ao vosso planeta?

-Terra.

– E como é que vocês se chamam a si próprios?

– Terrestres.

– Nesse caso, quem são os homens?

– Também somos nós.

– Isto é, vocês chamam-se tanto terrestres, como homens? Em que é que consiste a diferença?

– A diferença é que na Terra chamamo-nos homens, e no Universo denominamo-nos terrestres para indicar a nossa origem do planeta Terra.

– Admitindo isso, que é então a humanidade?

– A humanidade é o conjunto de todos os homens.

– Quem é você?

– Em que sentido?

– Nao viole as condições do nosso acordo. Responda à pergunta.

– Ora, eu sou… coisa… antes de tudo, sou homem…

– O que significa “antes de tudo”? Você é mais alguém?

– Pois sou! Por exemplo, sou homem e pertenço ao género masculino. Sou russo. Sou engenheiro, enfim! Tudo depende…

– Chega. Observe as condições. Deve responder francamente à nossa pergunta.

– A uma pergunta dessas não se pode responder francamente!

– É possivel responder com franqueza a qualquer pergunta.

– Aliás, vocês acham que a qualquer pergunta há uma resposta só?!

– Tem violado constantemente as condições. Último aviso.

– Está bem, prometo que não vou violar mais nada…

– Então, quem é você?

– Sou homem.

– Existem no vosso planeta outros seres que possuem a razão?

– Não. Embora eu tenha ouvido dizer que os golfinhos… Não, eles não contam.

– Há quanto tempo existe a vossa civilização?

– Vários milhões de anos. Enfim, pode ser, menos que isto… Sabem, eu pessoalmente não estive presente quando surgiu o homo sapiens…

– Estou a adverti-lo mais uma vez! De que modo apareceu a Razão no vosso planeta?

– Ninguém sabe concretamente. Existe um monte de hipóteses teóricas, mas…

– Qual a missão principal da civilização humana?

– Que raio de perguntas vocês fazem!

– Não tente escapar à resposta.

– Vou tentar formulá-la, deixe-me pensar um pouco.

– Damos-lhe um minuto… O prazo findou. Então?

– A nossa missão principal é assegurar a continuação da vida na Terra.

– Só isso? Mas para quê?

– É o que nós próprios não sabemos. Durante muitos séculos os nossos cientistas têm tentado resolver o problema… Por exemplo, a minha mulher diz-me: “Quero ter bebé, querido”, e o que é que lhe vou responder? “Para quê?”…?!

– Por outras palavras, você não sabe em que consiste o sentido da vossa existência?

– Não e como é que poderia sabê-lo?

– Mas é impossível! Por exemplo, você… para que é que você vive?

– Sei lá… ora, escutem, eu vivo… simplesmente vivo, e nada mais! Esforço-me por fazer alguma coisa útil para os outros homens… ajudar alguém… Em geral, o que actualmente importa a toda a gente é que não haja guerras, mas sim… a paz na Terra!

– Basta. Tudo isso são coisas que valem só para os casos particulares, mas o que nos interessa é uma lei universal.

– Neste caso, não sei.

– Bem, agora formule a Lei Principal do Universo.

– “Tu fazes alguma coisa por mim, e eu… por ti”, ah-ah-ah!.. Mas se falar a sério, não conheço tal lei. Com certeza, ela não faz parte do Código Penal…

– Em sua opinião, quem é que dos terrestres a poderia conhecer?

– Em minha opinião? Ninguém! Olhem, seria melhor consultarem os cientistas… aqueles… como se chamam?.. filósofos, já que eu não estou apto…

– Somos obrigados a interromper o interrogatório e metê-lo no Isolamento por violações frequentes das condições.

– Mas é absurdo!… Eu não poderia…

* * *

– Continuemos o interrogatório. Como se chama a vossa Galáxia?

– Não sei.

– Que planetas vocês conhecem?

– Os do Sistema Solar, pois os nomes deles utilizam-se muitas vezes nas palavras cruzadas… Deixa cá ver… Mercúrio… Vénus, Marte… Júpiter, Saturno, aquele… como se chama?.. Neptuno, Urano… Parece que me esqueci de qualquer coisa… Pois, Plutónio! Não, Plutão! O nosso satélite chama-se…

– Já sabemos. Vocês têm conhecimento da existência da Razão nesses planetas?

– Não, como é que?..

– Aviso pela violação da brevidade da resposta. Com que civilizações de outros planetas a Terra mantém contacto?

– Vocês fazem as mesmas perguntas que se costumam fazer nos romances de espiões: “senhas… lugares de encontro”… Em geral, não temos contactos desse género… por enquanto…

– Que quer dizer “por enquanto”?

– Muitas vezes os homens viram aqueles… como se chamam?.. OVNIs… quer dizer, objectos voadores desconhecidos… Houve também muitos casos quando a gente encontrava vários extraterrestres, mas estes nunca nos prestaram atenção!

– Advertimo-lo outra vez que está a violar as condições. Vocês realizam voos cósmicos?

– Eu, pessoalmente, não. Se não contar com alguns dos meus sonhos em que eu voava como um pássaro… mas isso em geral só teve lugar depois duma certa dose de bebidas espirituosas…

– Trata-se da humanidade em geral, não se distraia.

– Sim, os cosmonautas andam ali no espaço, como os peões…

– Qual é o alcance desses voos?

– É limitado pelas reservas de combustível… Isto é, várias centenas de quilómetros, mais ou menos.

– Por que é que os terrestres não empreendem tentativas para encontrar a Razão noutros planetas do Sistema Solar?

– Como é, não empreendemos?!.. Lançámos diversas sondas espaciais!.. O problema é que não há lá ninguém, nem vivalma! Parece que vocês, rapazes, leram muitos livros da ficção científica ultrapassada… Por exemplo, Aelita de Tolstoi e outros romances da mesma categoria…

– Advertimo-lo pela última vez. O que é que investiga a vossa ciência?

– Ora, ciência!.. Poderia dizer-lhes, mas vocês não iriam acreditar, de certeza!

– Diga à mesma…

– Os cientistas investigam tudo o que está relacionado com a humanidade. Por exemplo, divisão do zero em zero, anedotas frescas, palavras cruzadas, tricotagem, chá… o chá é mesmo obrigatório, três vezes por dia!

– O que é que você investiga pessoalmente?

– Nada. Não sou cientista, sou engenheiro como já lhes disse…

– Será que nem todos os homens se dedicam à ciência?

– Se todos se dedicassem a essas coisas, voltaríamos a viver nas cavernas!

– Em que é que você próprio vê o sentido da existência?

– Como é, em que…? Em ser feliz…

– Suponhamos. Então o que é a felicidade?

– Sabem, quanto a isso há uma anedota que já tem barbas…

– Bom, vamos-lhe dar um minuto, tente formular a definição da maneira mais precisa… Então?

– A felicidade representa uma emoção que caracteriza a satisfação óptima do homem com o contínuo espácio-temporal que deve ser dividida em raíz quadrada da xis menos um… Soa bonito, não soa?

– Qual é o número dos homens no vosso planeta?

– Eh pá, vocês tentam obrigar-me a propagar segredos estratégicos, rapazes, e isso não é bom!

– Quer ser metido no Isolamento?

– Mais de cinco mil milhões!

– Não pode ser mais preciso?

– Os dados mais precisos encontram-se nos folhetos da estatística que sempre mentem, porque só são comprovados de 10 em 10 anos…

– Suponhamos. Em que é que a humanidade vê a ameaça principal para a sua existência?

– Ah, já estudámos isso com atenção particular… A guerra nuclear à escala mundial.

– O que é a guerra?

– “A la guerre comme à la guerre”… Em geral, é… deixem-me pensar… é uma colisão armada de grandes massas de povo… dos estados, aliás…

– Quer dizer que os homens se matam uns aos outros?

– Eh, para nós tais coisas são muito fáceis… é como cuspir no chão. E, a propósito, matamos a gente não só durante uma guerra…

– Mas porquê?

– Eh pá, nesta vida acontecem várias coisas… Por exemplo, ontem ia eu para a casa num autocarro, e houve um tipo bêbado e sujo, quer dizer, um terrestre muito feio. Avançava dentro do autocarro como um blindado! Pois, era um sujeito que eu poderia matar logo ali, e com muito prazer!

– Fala de mais. Tente ser lacónico. Quais são os problemas que a humanidade enfrenta na hora actual?

– São muitos, esses problemas, não se pode enumerá-los todos… Por exemplo, o problema ecológico…

– Em que consiste?

– Por toda a parte está tudo sujo e radioactivo…

– Qual é a causa dessa poluição?

– Todos deitam fora o lixo e ninguém quer fazer a limpeza! O homem é um factor que desordena o ambiente. Quanto mais ele existe, tanto mais… queiram desculpar a expressão… ele caga debaixo de si…

– Existem outras formas de vida na Terra ou não?

– Ora essa! Com certeza! Animais, plantas… Enfim, a nossa mãe-natureza. Mas nada disso possui raciocínio.

– Para que é que existem, então?

– A gente utiliza-os de acordo com a respectiva actividade vital.

– De que modo?

– Os animais e as plantas são aproveitados como comida ou materiais… Os animais ajudam os homens a cumprir vários trabalhos pesados. Mas isso não quer dizer que os amemos por esse motivo, infelizmente!

– Mas vocês têm máquinas, diverso material técnico, não têm?

– Temos, sim, mas sem proveito! Por exemplo, as máquinas ainda não apreenderam a caçar ratos!

– Por outras palavras, as acções da humanidade visam à aniquilação de outros representantes da vida biológica?

– Ora, não é bem isso… Embora, é verdade, os animais e as plantas vão ficando cada vez mais reduzidos. Compreendem, o homem no nosso planeta é considerado acima de tudo… E deve ser assim mesmo, pois é o rei da natureza!

– Como é que você encara o seu próprio futuro?

– De maneira nenhuma.

– Que quer dizer?

– Por que devo encará-lo, se, seja como for, não vou ter aumento de ordenado?… Tanto mais que não sabemos qual vai ser o nosso futuro.

– Mas isso não pode ser! Você mente, réu!

– Pode, sim, senhores! Podemos apenas supor o que nos espera. Por exemplo, se me embriagar depois do trabalho, é certo e sabido que logo de manhã a minha mulher faz um barulho dos diabos!.. É verdade, alguns tipos tentam predizer certas coisas. Por exemplo, avaliando a posição das estrelas ou tendo em conta o estado dos restos de café na chávena… Mas, sou eu que vos digo, não passam de puros charlatães! Digam-me, como é que se pode predizer algo, ao avaliar os restos de café, sobretudo se se trata dum café produzido no nosso país?!

– Réu, você está-se a afastar do nosso tema. Apesar de tudo, será que cada homem não conhece o seu próprio destino?

– Bem, cada um sabe apenas que todos ficaremos um dia ali, mas quando e como… isso não.

– E como é que você sabe que um dia há-de morrer?

– Quanto a isso, tenho um pressentimento muito particular…

– E como é que você encara esse destino?

– Sem entusiasmo. Sabem lá quanto custa um enterro hoje em dia?

– Ou seja, você vive sem pensar nisso, não é? Vive e deixa viver os outros, como se diz…

– Sim! Mil vezes sim, se é isso que vocês pretendem ouvir de mim, raios os partam! Por que é que vocês se fazem em deusinhos espertos e todo-poderosos? Não permito que me tratem como um verme!

– Metam o réu no Isolamento.

* * *

– Está pronto para prosseguir?

– Estou.

– Promete não violar as condições do interrogatório?

– Prometo, sim.

– Óptimo. O que representa o maior valor para a humanidade?

– Paz… Trabalho… Maio… porra, que digo eu?… A liberdade e a fraternidade… embora isto também seja banal…

– Que fazem os homens para defender esses valores?

– Empreendemos diversos esforços…

– Pessoalmente, o que é que você faz para que na Terra reinem a paz e a liberdade?

– Eu… eu… para mim bastam as minhas funções habituais! Devo sempre alguma coisa a toda a gente!

– Escusa de prosseguir. Em que consiste a Verdade Absoluta?

– A Verdade Absoluta não existe. Em qualquer caso, era assim que nos ensinavam na escola e no Instituto…

– Tem certeza que ela não existe?

– Absolutamente!

– Porquê?

– A experiência prova que tudo é relativo… Mas não pensem que estou a evocar aquela brincadeira velha…

– A experiência de quem?

– Porra, será que isto não é evidente?

– Nós é que fazemos as perguntas, aqui. Quantos são dois mais dois?

– Oh, essa é da categoria das pesadas! Deixem-me pensar profundamente.

– Não tente escapar à resposta. Responda já.

– São quatro, não são?

– E se pensar melhor?

– Pois já disse… quatro. Qual pergunta, tal resposta…

– Bom, vamos anotar assim mesmo. Quais são os poderes da humanidade?

– Somos capazes de fazer tudo! Ouviram? Tudo!

– Acalme-se. Por exemplo, de que é capaz a humanidade?

– A pergunta não é clara para mim.

– Bem, vamos colocá-la doutro modo. Existem coisas que estejam fora das capacidades do homem?

– Claro que sim! Por exemplo, não é possível abrir o guarda-chuva no bolso… Mas, do ponto de vista de hipóteses teóricas, não há tais coisas.

– E do ponto de vista prático? Sabem realizar a remoção do tempo?

– Por que não? Vem mesmo em alguns dos nossos documentos escritos. Leiam-nos uma vez durante os vossos tempos livres, chamam-se Contos mágicos…

– Vocês, homens, sabem transformar-se em outras coisas?

– Mas constantemente! Por exemplo, cada homem fica diferente quando sai da casa e vai para o local de trabalho, e vice-versa… A minha mulher serrazina-me constantemente por causa disso. “Era melhor, diz ela, que falasses ao teu chefe da mesma maneira como me falas a mim em casa!”

– Não faz sentido prosseguir. Temos em vista a fisiologia do homem, não a sua psicologia.

– Ora, bem mo podiam ter dito desde o início!

– Como é que os terrestres encaram a hipótese de contacto com civilizações exóticas?

– De modo diferente. A maioria acha que não existem extraterrestres. Inclusive os académicos, por exemplo…

– E em que é que se baseiam para considerarem assim?

– É que não há provas sólidas favor da existência deles. Excepto as afirmações duns malucos que andam a enganar o povo!

– Mas existem provas de que não haja outros seres portadores da Razão?

– Concretamente, não, mas…

– E a que categoria pertence você próprio?

– Sinceramente, nem estou apto a acreditar… E não vou acreditar enquanto não tocar com as minhas próprias mãos em tais seres… que sempre são verdes e voam com a ajuda de pires, chávenas e pratos!.. Por exemplo, posso tocar-lhes, camaradas?

– É proibido. Em sua opinião, a humanidade necessita de um contacto oficial com uma civilização extraterrestre, ou não?

– Necessita, sem dúvida! Qualquer contacto é sempre necessário ao homem. Tanto para beber aos três, como para dormir com a mulher!..

– Para quê?

– Ora essa! para quê?!.. Para intercâmbio das respectivas realizações… aquilo que cada um tem… para ajudar o outro… E assim por diante!

– Você disse “ajudar”. Isso significa que a Terra necessita de ajuda da parte dalguém?

– Acho que sim. Os mais fortes devem ajudar os fracos, isso é uma lei, a nossa lei principal mesmo…

– Como queira. Vamos fazê-lo regressar…

– Outra vez ao Isolamento? Mas porquê?

– Calma, vamos só repô-lo no lugar donde foi arrancado.

* * *

– Antes de conceder a palavra ao Coordenador-Chefe, queria recordar aos estimados membros do Conselho Galáctico o problema essencial. A nossa civilização galaxial assumiu uma missão grande e gloriosa que é a de prestar Ajuda aos seres razoáveis que vivem dentro dos limites do nosso alcance. Inclusive os homens assim-chamados que habitam o planeta Terra, o qual tem sido objecto da nossa observação ao longo de vários milénios… Hoje em dia, nesse planeta, regista-se uma situação verdadeiramente dramática e a sobrevivência dos terrestres vê-se ameaçada devido a factores numerosos, verificando-se estes últimos ao nível global. Apesar disso, os colaboradores da nossa Missão, encabeçada pelo Coordenador-Chefe, ainda não empreenderam esforços de grande relevo a fim de prestar assistência à Terra, por uma razão desconhecida, limitando-se apenas aos contactos discretos com alguns homens. Desta feita, a meu ver, caberá ao nosso Conselho a análise do problema acima dito para tomar uma decisão adequada… Passamos a escutá-lo com a maior atenção, Coordenador-Chefe.

– Caros membros do Conselho! A Terra é a civilização mais cheia de contradições e a mais privada de lógica entre todas as raças espaciais com que alguma vez deparámos. Isto foi o que constatámos ainda no decorrer da Observação, e os contactos directos com alguns indivíduos só comprovaram esse facto. Não vou evocar todos os factores negativos, mas queria destacar apenas os de importância essencial. Primeiro. Entre os terrestres não há unidade. Permito-me salientar que todos eles são differentes tanto física, como psicologicamente. Por isso responderam de modo diferente às mesmas perguntas. De que sociedade unida se poderia tratar, se, até ao momento actual, os homens não elaboraram um ponto de vista que fosse único e obrigatório para todos, sobre as questões de base?!

– Por exemplo?

– Por exemplo, à nossa pergunta “O que é o homem?” encontrou três respostas diferentes, que são: a) “O homem é o animal que é capaz de trabalhar e produzir os instrumentos de trabalho”; b) “Pela sua essência, o homem é um conjunto de relações sociais”; c) “O homem é o ente apto à actividade criativa”!.. Tanto mais que os respondentes falavam sem pensar, como se tivessem aprendido estas fórmulas em quaisquer fontes escritas. O que é que vos parece, estimados membros do Conselho e Sr.Guarda Principal dos Conhecimentos?

– Continue.

– Os homens têm verdades de mais, sendo todas elas relativas. É evidente que os terrestres não estão conscientes do facto de as verdades básicas serem sempre símples e inequívocas. É possível que seja por isso mesmo que gastem tanto tempo e tantos esforços em discussões inúteis que nunca resultam em prova de coisa alguma. À guisa dum exemplo, até inventaram um postulado que constitui na afirmação errónea “Da discussão nasce a luz”! A seguir, a sua contradição principal consiste na incoincidência entre o palavreado e as acções práticas dos homens. Tanto mais que muitos deles têm consciência disso, mas nada empreendem para eliminar esse defeito. Podíamos apresentar infinitos exemplos … Assim, lutando, como os terrestres afirmam, pela paz universal, eles próprios fazem tudo, ao mesmo tempo, para desencadear novas guerras. Embora considerem a crise ecológica um dos maiores perigos, continuam no entanto a destruir o seu meio-ambiente… A falta de lógica dos homens revela-se quanto à sua atitude para com vários problemas, porque em relação às questões realmente complexas eles são, em regra, categóricos e rígidos; em contrapartida quando se trata de coisas claras mesmo para um selvagem, começam de repente a duvidar e hesitar…

– É tudo, Coordenador-Chefe?

– Poderia salientar ainda que é inerente aos terrestres o uso de muitas palavras com o fim de exprimir os pensamentos, bem como a incapacidade de expor os postulados duma maneira breve e precisa. São também típicas, neles, uma excessiva emocionalidade e a desobediência. Demonstram, além disso, tendência para violar as proibições mais severas, mesmo que tais infracções constituam um perigo para as suas vidas. E enfim, encontram-se, em geral, num nível extremamente baixo da evolução física, técnica, cultural e moral. Do ponto de vista galáctico, bem entendido… Não vou relatar pormenores, pois o conjunto dos dados está à vossa disposição no dossier.

– E que conclusão tira disso tudo?

– Mui estimados membros do Conselho e venerando Guarda Principal dos Conhecimentos! A informação obtida permite-nos tirar a única conclusão possível, ou seja, a civilização em questão, avaliada em todos os seus aspectos, não pode receber de nós os Conhecimentos necessários para ser incluída no Conselho Galáctico, e nem é digna de Contacto oficial connosco!

– Alguém tem perguntas a fazer?

– Permite-me?

– Escutemo-lo, estimado Ajudante Geral.

– Por que é que, estimado Coordenador-Chefe, vocês conversavam com os terrestres à guisa de um interrogatório?

– É que, ao longo de contactos numerosos com os representantes da civilização terrestre, apurámos que todos eles, de qualquer modo, esperam uma ajuda vinda do exterior. Têm um monte de problemas mas em vez de resolvê-los com as suas próprias forças, alimentam a ilusão de que alguém estranho os salve um dia da autodestruição nuclear, limpe os terrenos poluídos, dê comida aos que têm fome e cure os doentes. Penso que não é preciso explicar o prejuízo que causa tal convicção a uma civilização em vias de desenvolvimento. E então… Compreendem, não poderíamos deixá-los sem ajuda. No fim das contas, é o sentido, é o objectivo de toda a nossa existência. Mas qualquer ajuda nossa só iria causar prejuízo aos homens. Resolvemos esta contradição do modo seguinte: a melhor ajuda consistirá em destruir a esperança dos homens numa assistência exterior, qualquer que seja! Ao aniquilar esta ilusão, fortaleceremos a fé dos homens em si próprios. É com esse objectivo que temos tido contactos com os terrestres, de tal maneira que pudessem concluir desde já: somos uma civilização inimiga que veio visitar o seu planeta não para estabelecer laços de ajuda e amizade, mas para conquistá-los…

– Também tenho uma pergunta. Não acha que vocês se excederam, estimado Coordenador-Chefe? Não lhe parece que os homens irão considerar daqui por diante os representantes de qualquer raça como seus inimigos? Não acha que isso vai contribuir para que surja nas suas almas o medo perante o Espaço, e para que aumentem as despesas loucas em defesa da Terra contra uma “invasão” do exterior?

– Pode ser que o Senhor tenha razão, venerando Ensinador-em-Chefe. É possível que venha a ser assim, pelo menos, ao longo de várias gerações humanas. Mas estou convencido que com o decorrer do tempo isso passará, e no fim das contas, nem é essa a “doença do crescimento” mais perigosa… O que importa ainda está para acontecer. Mesmo agora, não é tarde para alterar os nossos planos. Mas é a vós, caros companheiros, que cabe decidir…

– Quem tem mais perguntas?… Não têm?… Bom, então vamos aos votos…

* * *

– Em que pensas, papá, desde o princípio do dia?

– Sabes, filhito, tive hoje um sonho muito estranho.

– Que sonho?

– Como se me estivessem a interrogar…

– A interrogar? Mas só se interrogam os criminosos!

– Não só. Os prisioneiros também são interrogados …

– E quem te interrogava?

– Não me lembro. Nem sobre o quê… lembro-me de maneira muito confusa. Parece que me faziam perguntas idiotas: qual é o sentido da vida, algo sobre os extraterrestres, etc. Um absurdo, eis o que penso! E parece que eu, como convém a um herói aprisionado, decidi de início guardar o mais completo silêncio, mas depois comecei a fazer-me tolo e a engabelar os meus adversários. Quer dizer, a atulhá-los de desinformações…

– Ora! Parece uma excelente ideia! Mas… mas era mesmo um sonho?

– Pois era, devia ser assim.

– Diz-me lá outra coisa. Quando é que me vais consertar a bicicleta? Digo-te o mesmo todos os dias e tu respondes sempre: “depois, depois”!.. E o Verão está a acabar, e nem uma só vez andei de bicicleta!

– O que é que aconteceu à tua máquina?

– Já te disse várias vezes, papá! A roda de frente coxeia e o guiador entorta e guina…

– Ouve, filho… Não podes consertá-la tu próprio? Por que é que há-de ser o pai a consertá-la sempre, se és tu quem anda na bicicleta, e o gozo é todo teu?

– Ora papá!.. Tu és mais grande e mais forte, e eu sou ainda pequenito, não sou? Bom, quando for adulto, vou consertar bicicletas. Passas a vida a dizer que os fortes devem sempre ajudar os fracos, que isso é uma lei universal!.. Por que me olhas assim, papá?

– É estranho… Tenho a impressão de já ter ouvido qualquer coisa como isso, mas não me lembro bem onde, nem quando poderia ter sido!..

– Então prometes que me consertas a bicicleta?

– Ora, é um problema sério… Bom, vamos ver como é que portas… Por que é que não comes?

– Papá, em que é que consiste o sentido da vida?

– Quando fores adulto, saberás responder a essa pergunta.

– E se a minha resposta for errada?

– Sabes, filho, uma pergunta dessas só pode ter respostas certas, OK? Lembra-te disso, filho, se acontecer que…

– Se acontecer o quê, papá?

– Se um dia fores também submetido a um interrogatório.

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