José Esteves acorda com toda a sintomatologia psicosomática característica deste tipo de dias. Vómitos. Astenia. Suores frios. O despertador semi-inteligente pressentindo o ataque de ansiedade, fornece-lhe, para o distrair, um pequeno resumo das notícias nacionais que ocorreram entre a noite e a madrugada. Junto às costas Algarvias, a patrulha marítima acabou de torpedear mais um cargueiro cheio de refugiados políticos vindos das costas Africanas. Não foram tomados em consideração quaisquer pedidos de clemência. Nem mesmo a oferta ao Instituto Câmara Pestana de duas mil crianças nascidas durante a viagem para experiências em toxicologia e viroses mutagénicas. Cargueiro ao fundo e ponto final. Entretanto, no meio dos arbustos da avenida da Liberdade, lá pelas três da madrugada, um grupo dos sem-casa assaltou uma carrinha de turistas noctívagos nipónicos e começou a devorá-los, meio crus, aproveitado a água enquinada dos lagos para fazer uma sopa de algas. Quando capturados por uma das raras milícias urbanas ainda operacionais, o grupo gerontológico declarou a quem o quis ouvir: “São chinas. Comem sushi. Um nojo. A carne sabia a peixe…”
José Esteves contempla-se ao espelho da casa de banho, deixa pender a língua onde despontam algumas áftas psico-somáticas, engole dois comprimidos anti-histamínicos, coça as úlceras do peito, abre a torneira onde escorre um fiozinho de água salôbra, e passa o depilatório sobre o rosto, antes de barrar todas as superfícies descobertas com um creme protector UV. Vezes sem conta vem-lhe à cabeça o formulário do teste que andou a preparar desde ontem. Serão as questões propostas suficientemente adequadas? Conciliáveis com a taxa de insucesso? Não faz ideia e isso assusta-o. Melhor teria sido informar os alunos do teor das perguntas, passar-lhes à sucapa a grelha do teste como costumam fazer alguns dos seus colegas, e proteger-se assim, protegendo ao mesmo tempo a taxa do insucesso escolar. Como não o fez, corre agora o risco, durante o percurso até à Escola, de sofrer qualquer tentativa explícita de assassinato. Como já aconteceu ao pobre do Silva, à Leonor, ao Tavares…
Solícita, a telefonia informa-o que a falha tectónica que divide ao meio as caves do Centro Comercial das Amoreiras atingiu o diâmetro de cinco metros. Devido às enchentes, toda a Zona da Ex-Expo alagou de vez. Que não foi ainda reparado o tabuleiro inferior da Ponte Ancien Régime (novo nome) onde há cinco meses atrás um comboio inteiro desabou sobre um dos submarinos nucleares da Neues NATO. Felizmente, a contaminação do Tejo apresenta baixos níveis de radioactividade, asseguram as autoridades. Nada de preocupante. Nada que faça os mexilhões brilhar à noite. O pior vai ser pagar o submarino como novo. E porque alguém vai ter de dar o corpinho ao manifesto, são esperados novos cortes nos subsídios dos funcionários públicos.
Indignado, José Esteves engasga-se com o desinfectante oral de largo espectro. Mais cortes? Logo no dia de hoje?
Seja como for, é inútil protestar. Vendidos ao patronato, os sindicatos dos professores calam a boca e cruzam os braços tal qual Pirrão. O seu sacerdócio pertence pertence às profissões de alto risco, de tal modo que é obrigado a viver durante todo o ano lectivo longe da família, num apartamento esconso, que o Estado insiste em não financiar. Receio das represálias estudantis. O que significa mais despesas, um quarto alugado, um código secreto de telefone, armamento defensivo e ofensivo, passes, seguros de vida acrescentados, e outros tantos pequenos horrores cumulativos.
Terminadas as abluções, segue-se a deglutição forçada da papa de farelos carregadinha de psicotrópicos e ansiolíticos, e todo o ritual quotidiano do vestir.
Em primeiro lugar, espalma sobre a jugular os dermo-implantes que avisarão as seguradoras caso haja falha sistémica fora do local de trabalho. Se isso acontecer, ninguém paga coisa nenhuma. Depois veste o escudo de kevlar munido de placas de cerâmica, capaz de resistir ao impacto do fogo de uma semi-automática disparada à distância de quinhentos metros. José Esteves pergunta a si mesmo porque é que se há-de ralar e sofrer todos os desconfortos de uma crise de hipertermia. Já ninguém utiliza automáticas em casos como estes. Nos cantos esconsos da sala dos professores, há que se refira a mísseis comprados aos Bósnios por tuta e meia. Mísseis com um alcance reduzido de 150 metros, mas mesmo assim eficazes em situações de eliminação de profes com o máximo do prejuízo.
José Esteves enfia os protectores cervicais, oculta as virilhas com as conchas anti granadas ofensivas, cobre a cabeça com o capacete, os olhos com os óculos espelhados, as orelhas com os sono-protectores. E por fim, terminado o vestir, segue-se toda a gama de armas pedagógicas. Um tazer (legal e aprovado pelo Instituto de Correção e Disciplina Juvenil). Um neuro-bastão (pouco recomendado, mas as autoridades costumam fechar os olhos). Um lança dardos de neurotoxinas com uma capacidade disfuncional para trinta horas de convulsões (ilegal e anti-pedagógico, visto que inibe a capacidade de aprendizagem dos discentes). No estojo do peito, junto à bolsinha das cadernetas/ficheiros, uma caneta de tinta indelével e de aparo de titânio. Acorrentada ao pulso esquerdo, a pasta onde guarda as follhas de teste, protegida com um fecho codificado.
Finalmente está preparado para saír do apartamento. Com todo o cuidado destrava a porta, espreita para o corredor onde se ouvem à distância os gritos habituais de uma família a ser espancada pelos filhos. Um holograma carcomido do Papa, colado à janela do vão das escadas, estende os braços ao mundo num sorriso serôdio. Um aglomerado de preservativos dissolvidos em ácido, fumega ainda junto aos pés virtuais do defensor das proles múltiplas.
OK, ninguém à vista, vamos em frente.
No hall de entrada, protegido por uma comporta dupla, José Esteves dá de frente com duas fileiras dos sem-casa que ainda estão a dormir, meio comatosos, no buraco entre as duas chapas metálicas. Não vão eles acordar na hora errada e travar as calhas de rolamento com um braço ou uma perna, o prof passa-lhes por cima em passinhos de corrida, triturando aqui uns quantos dedos, ali um cotovelo ou um crânio seboso, esforçando-se por não respirar os relentos a caca, vómito, sarro e outros fluídos corporais que se evolam da massa adormecida. “Cabrão de burguês!”, diz-lho um dos sem-casa. “A canalha fascista sempre calcou a classe operária, mas há-de chegar o dia em que…”
“Experimentem dar aulas para ver se gostam, malandros…”, resmunga José Esteves numa raiva pedagógica, passando à rua, engatilhando o espigão eléctrico não vá a Brigada da S.I.D.A. aproximar-se dele, de seringa em riste, mesmo a estas horas da madrugada.
Nem pensar em servir-se do Metro até à Estação do Rossio. Hà meses que se encontra em fase de desparasitação. As baratas são tantas, que chegaram a cobrir e a devorar alguns utentes mais incautos em apenas poucos minutos. Baratas enormes, africanas, que acompanharam os parcos bens dos derradeiros refugiados aceites pelo governo em território nacional.
Descer a Avenida da Liberdade a pé também oferece os seus riscos. É ainda noite e a floresta densa do jardim central enche-se de olhinhos e esgares maldosos. José Esteves acende a luz de presença do bastão eléctrico para vêr se intimida quem o queira atacar. O logotipo da Escola cintila-lhe no peito. Toda a gente sabe que os profes estão sujeitos a um número incomputável de doenças infecto-contagiosas, além de possuirem cartões com um crédito reduzidíssimo. O pior são os sem-casa iliteratos. Os afásicos conceptuais, que pululam em Lisboa cada vez em maior número. Para esses, tanto se lhes dá como se lhes deu que José Esteves seja profe. O que importa é que se trata de proteína para a panela.
Em abono da verdade, talvez fosse melhor ser atacado por um grupo de urbano-depressivos do que ter de enfrentar as massas estudantis em dia de Teste. Pelo menos sempre havia uma justificação de peso para poder faltar às aulas.
Chegado à Estação do Rossio, José Esteves esgueira-se em passinhos de corrida, juntamente com mais outros quantos trabalhadores furtivos, através do labirinto de tendas étnicas que atravancam o acesso à Gare. Galinhas picotam aqui e ali entre as pilhas de lixo. Criancinhas correm até junto dos passageiros, colam-se-lhes às calças e saias, guinchando em alta voz: “Guia, senhor, guia…”. José Esteves, no curto espaço de tempo em que vai subindo as escadas rolantes avariadas é abordado dez vezes pelos Xungas angariadores. Uns mostram-lhe à sucapa relógios Rolex. Outros tentam vender-lhe um chicote extensível. Uns quantos, com as irmãzinhas presas por correntes inquebráveis, tentam alugá-las ao minuto para uma rápida visitação pedo-sodomítica. Um estaminé feito à pressa no segundo patamar, colado ao buraco de uma loja incendiada, vende comprimidos, saquinhos, e frasquinhos acopulados a compressores dérmicos. Não se descortina um único segurança. Se polícia existe nas proximidades, anda lá pelo alto, em helicóptero, a ver as vistas através dos sensores infra-vermelhos dos mísseis ar-terra.
José Esteves mostra o passe à entrada da Gare a um outro Xunga contratados pela CP precisamente para serviços como este. O Xunga sorri-lhe através da cabeleira oleosa. “Lugar sentado, chefe?” pergunta-lhe. “Obrigado”, responde o professor sabendo que lhe é quase impossível procurar trocos nos bolsos protegidos por tantos fechos de segurança. “Não preciso de ajuda…”. “Olha o choné…” ameaça-o o Xunga com o picador em riste. “Ao menos duzentos euros prós envelopes…”. José Esteves sacode a cabeça, descobre a extremidade intimidante do bastão eléctrico, esgueira-se através das defesas de arame farpado, lança-se em passo de corrida na peugada da composição que ameaça partir.
O comboio mergulha na escuridão bafienta do túnel sem se fazer esperar. Avança, rápido, não vá algum dos blocos centenários caír-lhe em cima. Fuligem penetra por todos os orifícios da carruagem, depositando-se sobre as formas acocoradas dos passageiros que se limitam a enfiar sobre os narizes as gazes dos filtros moleculares.
José Esteves debate-se em busca de um lugar sentado. Não quer viajar junto das janelas, por causa daquilo que já se sabe. Não quer viajar nas coxias por causa do carreiro habitual de indigentes, que viajam sempre sem passe e sem bilhete, sabe-se lá como. Desta vez teve azar. Como não quis pagar aos Xungas, ficou de pé, torcido contra um dos bancos, sujeito à fricção permanente dos pobres que passam.
Pobres que são às dezenas. Uns cantam, esganiçados, acompanhados por uma matilha de criancinhas presas a trelas, ao som de um micro-sintetizador electrónico. Outros arrastam-se, puxando pelos cabelos em gritos de desespero: “Tenho fome, tenho muiiiita foooome…”. Outros, de peito nu, exibem chagas, úlceras, pústulas e um sem número de mutilações várias: “Quem dá qualquer coisinha pró implante. Quem dá…”. Outras, balzaquianas gordas, flácidas e prenhas, agarram-se ao pescoço dos utentes, mostram-lhes os peitos, murmurando pedidos agressivos de leitinho não contaminado para o rebento.
Mas a zona da Amadora aproxima-se e já ninguém quer saber de mais nada. A fila ininterrupta de pobrezinhos desapareceu como por milagre. As janelas escancaradas da locomotiva, apenas protegidas por uma rede de segurança, transformaram-se de súbito num lugar a evitar. Alguns passageiros mais abastados retiram da mala armas automáticas com mira laser, e um cano suficientemente esguio para conseguir passar entre as malhas da rede. As carcaças dos prédios condenados erguem-se de ambos os lados da via como falésias esburacadas de cimento. Tubagens, vindas dos terraços superiores, colam-se às paredes, curvam-se a dez metros do solo na direcção da linha, como bocas de canhões prestes a disparar. Os passageiros resmungam, encolhem a cabeça sobre os ombros, desdobram capacetes, enfiam óculos de soldador, e esperam, enquanto o comboio acelera, tentando fazer-se escasso. PAF; PAF; PAF, fazem as primeiras bolas de chumbo contra o plástico da locomotiva, aceleradas em queda livre desde o alto dos prédios e judiciosamente apontadas pelas tubagens ôcas ali postas precisamente para esse fim. Não vale a pena colocar vidros nas janelas, nem sequer anti-bala. É coisa que não dura mais do que três, quatro dias. E o problema não é só a energia cinética dispersa pelo impacto. A verdade é que existem outras esferas lançadas lá do alto, esferas de vidro cheias de ácido, sangue contaminado, fezes líquidas e outros tantos horroros quotidianos. Os utentes gritam sob a força do ataque. Os que se encontram armados disparam contra os prédios na vaga esperança que o sistema logicial das armas consiga atingir alguém. “Deviam ser todos mortos, os sacanas dos putos…”, resmunga uma velhinha retirando do saco uma AK-47, felizmente sem carregador. “Um por um com uma bala nas cabecinhas. Isto não é brincadeira que se faça…”
Encolhido a meio do corredor central, com os ouvidos a rimbobar sob a saraivada de projécteis caídos lá do alto, esforçando-se por não tocar em nenhum dos respingos vermelhos e amarelos que fervilham contra o estofo carcomido dos assentos, José Esteves morde os lábios enquanto dá contas à vida. Já está habituado. Isto não é nada que se compare com os perigos que corre um professor…
Chegado ao Cacém, as coisas mudam de figura. Prudentemente o professor activa todos os circuitos de emergência do fato. De lança-dardos na mão direita, pasta dos testes protegida pela armadura de kevlar, José Esteves aproxima-se à sucapa do edifício da Escola.
Aqui vamos nós, murmura entre dentes, lançando-se em passo de corrida na direcção do átrio, sob uma saraivada de pedras, esferas disparadas por fisgas, um ou outro projéctil balístico, e algumas investidas de discentes montados em motas aureladas de espigões.
Após dez minutos de combate campal, entra a coxear na turma. Depois de duas quedas, receia ter fracturado a rótula. Sangue escorre devagarinho de uma lesão no cotovelo esquerdo. Um traço vermelho junto ao pulso revela todo o tipo de tentativas infrutíferas para lhe roubarem a pasta. Do outro lado da rede, a turma inteira ulula: “Não queremos teste”, “Greve! Greve ao ponto!”, “O prof está dois minutos atrasado”, “Não há tempo. não há tempo…”
“Nem se atrevam…” grita-lhes José Esteves com o bastão a faíscar na mão direita. “Lembrem-se que ainda não cumpri a minha cota de abate este ano. Lembrem-se que ainda posso dar cado de um ou dois de vocês com o máximo de prejuízo…E que não me importo nada de começar hoje mesmo…”
A maior parte da turma acalma-se. Os mais sensíveis ao stress, trituram a ponta das canetas com os dentes. Outros entretêm-se a esfarelar os tampos das carteiras ou a arrancar os tacos do chão.
Devagarinho, com todo o cuidado para não sujar de sangue o questionário, o professor passa as resmas de papel através do orifício na rede, e vai sentar-se à secretária, completamente esgotado.
Na outra ponta da sala, os alunos começam a ganir perante a dificuldade das perguntas. Um deles chega a devorar o enunciado. Três outros penduram-se na rede e proferem em voz baixa ameaças de morte e mutilação, não vão elas ser gravadas pelo sistema de segurança da Escola que de facto nunca chegou a funcionar.
Inseguro, José Esteves passa os olhos pelas primeiras questões:
Leia atentamente o seguinte texto:
“Conhece-te a ti mesmo, assim diz a citação e assim eu próprio vos digo!”, afirma SÓCRATES.
1. A quem pertence a citação: A: Sócrates. B: Mager. C: O nosso PM
2. Partindo do princípio que a filosofia implica reflexão
Pergunta: Poderá haver filosofia espontânea? A: sim. B: Não
3. “O mundo nasceu da água” TALES
A afirmação de Tales pretende significar que A: o mundo nasceu da água. B: da terra. C: do ar. D: de lado nenhum.
No fundo da sala de aula, os gritos de fúria e frustração aumentam de intensidade. José Esteves começa a tremer. Afinal elaborou um teste demasiado difícil. A taxa de insucesso vai revelar-se gigantesca. O que implica visita de Inspector e tudo o resto. Quem sabe se mais um processo disciplinar e uma suspensão das actividades lectivas por provada crueldade mental. E como se isso não bastasse, uma espera feita pelos alunos, algures, fora dos terrenos da Escola.
O suor escorre-lhe em bica pela fronte. Não pode fazer nada senão recolher a maioria dos testes ainda em branco ao fim de duas horas, ou atravancados de graffiti insultuosos. E depois aguardar que a sala se esvazie e entre nova remessa. Pois este é apenas o primeiro teste do dia. Como ele, ainda faltam mais cinco.
O discreto logotipo que orla o cabeçalho, lembra-lhe do horror que seria uma transferência vergonhosa para uma Instituição menos creditada do que esta: ESCOLA SANTO MAGER PARA ALUNOS EXCEPCIONAIS E SOBREDOTADOS…