Neste ano de 2019 assinalam-se os centenários dos nascimentos de algumas figuras gradas da literatura e da cultura portuguesas: Sophia de Mello Breyner Andresen, Afonso Botelho, Natércia Freire, Jorge de Sena, José Hermano Saraiva, Joel Serrão, João José Cochofel, Maria Cecília Correia… e Fernando Namora.
O autor de «Retalhos da Vida de um Médico», «A Noite e a Madrugada» e «O Trigo e o Joio» já mereceu este ano duas exposições retrospectivas da sua vida e da sua obra: uma na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, entre 27 de Junho e 6 de Setembro, denominada «O escritor não tem poder nenhum»; e outra no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, entre 18 de Maio e 17 de Novembro (está, portanto, ainda a decorrer), denominada «E não sei se o Mundo nasceu». Foi ao visitar esta que me deparei com (e li) um excerto das suas obras – um entre vários reproduzidos no espaço – que se revelou particularmente evocativo para quem participa neste sitio e nesta associação. Vem do livro «Diálogo em Setembro», editado originalmente em 1966 pela Publicações Europa-América, e que consiste num conjunto de «crónicas romanceadas» em que, como se adverte logo no início, se «mistura personagens e factos autênticos com personagens e factos imaginados, acontecendo por vezes que os episódios de invenção são vividos por gente real e os reais por gente imaginada». Logo aqui parece talvez perceber-se uma predisposição para sair dos limites (por muitos considerados rígidos) do neo-realismo para e tentar uma incursão em territórios mais… especulativos. O que, efectivamente, acontece no último capítulo, intitulado «O sétimo dia», em que Fernando Namora reflecte sobre os efeitos da modernização tecnológica e urbanística na saúde (física e mental) e no comportamento das pessoas, ao mesmo tempo tentando antecipar o que o futuro poderá trazer.
Eis o excerto que chamou a minha atenção: «O Homo Sapiens foi criado e criou num meio em que a Natureza a todo o momento o comprometia. Hoje, é possível ignorar a Natureza, desconhecer os céus, dispensar as árvores, é possível viver em climas artificiais, substituir o sol e as ervas e impor ainda à fisiologia que acelere a sua adaptação às ambiências para que não foi preparada. Mas pergunta-se que homem surgirá dessa ruptura com o meio natural: demudado para um viver simultaneamente fácil e crispado, que debilita por tão pouco exigir das capacidades de iniciativa, de resistência e de luta, e que delapida pelas suas coacções sucessivas, perante as quais cada gesto obedece a uma necessidade dirigida, desviado da simetria entre a acção e a contemplação – o Homem continuará a ser o mesmo, com o vigor físico e o dinamismo mental que se foram apurando em múltiplas eras de disputa com a Natureza?» Sim, eis aqui a palavra, o conceito, a causa: simetria.
Outra passagem (anterior, e no mesmo capítulo) há que merece sem dúvida ser aqui reproduzida e destacada: «Não tardaria que alguns cientistas delineassem o fabrico de máquinas verdadeiramente “pensantes”, de máquinas capazes de “pensar” como o Homem ou muito melhor do que ele, pois certas descobertas revolucionárias em biologia molecular apresentam-se, segundo o Prof. Eigen, com consequências comparáveis às da física nuclear. O corpo humano funciona como um ordenador electrónico e estamos perto de lhe conhecer os programas e o segredo da execução. O neurofisiologista do Hospital de Brighton, William Ashby, após inventar a primeira máquina homostática, concebe a máquina amplificadora da inteligência – mais “inteligente que o Homem”; e o académico russo Kolgonoroff sugere a produção de um “pensamento artificial”, projecto esse que ele considera da maior viabilidade. Assim, previne-nos de que “teremos em breve verdadeiros irmãos podendo, como nós, raciocinar”. Irmãos que nos serão superiores. Que nos discutirão a direcção do Mundo. (…) A máquina inglesa A. D. A. comandou recentemente manobras navais e ganhou todas as batalhas em que a estratégia foi sua. O cientista Warren McCulloch, que esteve em Lisboa há algum tempo, declarou estar-se a ultimar a construção de robots destinados a desembarcarem em Marte, a fim de colherem informações impossíveis de conseguir pelos meios “clássicos”. Esses robots terão a capacidade de decidir sobre a relevância dos elementos que descobrirem. Serão dotados de um “intelecto” apto a avaliar, por exemplo, o aspecto de uma fotografia que possa ou não interessar transmitir para (a) Terra. Podem “ver” e resolver. Os ordenadores, enfim, serão doravante nossos companheiros e não mais nossos vassalos.» Note-se que, aqui, «ordenador» significa «computador».
São preocupações e reflexões surpreendentes por parte de quem era mais conhecido por abordar ficcionalmente (ou nem tanto) as vidas difíceis de muitos portugueses, em particular os que trabalhavam a terra, no campo e nas minas. Outro pormenor interessante: foi um romance de Fernando Namora, editado originalmente em 1961, que serviu de base para o primeiro filme não documental e de longa metragem realizado por António de Macedo, um dos fundadores d(est)a (associação) Simetria: «Domingo à Tarde», que teve estreia em 1966. (Também no MILhafre.)